Capítulo 1

Reside no sorriso torpe o desejo, ainda imaculado, de sorrir. Lá, nas profundezas áureas desse mesmo desejo, pousa a delicada folha da esperança, embebida em júbilo, caída da árvore da vida. Ainda que relegado ao mais fundo e enlameado poço que a mente humana possa criar, o sorriso de Gabel se verá livre das amarras amareladas dos dentes enfraquecidos pelo fast food e se multiplicará pelas bocas da cidade e do mundo, colocando em xeque a felicidade.

A voz doce e sussurrante de Redi desperta Gabel às sete da manhã. Sempre muito bem disposto, mesmo sem saber ao certo por quê, Gabel senta-se na lateral da cama e fala com Redi, em uma voz rouca, que ela não reconhece.

– Bom dia, Redi. Obrigado por me acordar.
– Bom dia, Gabel. Não há de quê. Você está bem? Sua voz está diferente esta manhã.
– Hmmm, talvez eu tenha tomado friagem ontem antes de chegar em casa. Sinto um leve ardor na garganta.
– Sim, pode ser isso. Tome um desses e não se preocupe que isso aí já vai passar.
Sobre o criado mudo de mogno, materializa-se, após um breve zunido elétrico, um copo cheio d'água e uma cartela de comprimidos contendo vinte e duas pequenas drágeas alaranjadas.
– Hmmm. Tem sabor de laranja. Adoro laranja. Obrigado, Redi. Você é uma mãe.
– Faço todo o possível para te agradar Gabel. O chuveiro já está na temperatura que gosta. O café estará pronto em dez minutos. Apresse-se ou perderá o metrô.

Como o prometido, Gabel encontrou a água do chuveiro na temperatura ideal que um banho matutino merece em uma cidade fria e úmida como Curitiba. Perfeição é o que define a vida de Gabel. Uma vida repleta de muito conforto e prazer; o carro do ano, um apartamento de luxo em um bairro rico da cidade, um emprego estável que lhe garante sua conta bancária recheada mensalmente, mulheres e muitos amigos. Uma vida feliz até se provar o contrário.

Redi, como foi carinhosamente batizada por Gabel, é um poderoso programa de inteligência artificial, cuja principal diretriz é servir ao seu dono. Tal qual outros de sua categoria, Redi toma conta da vida de seu dono para que nunca haja empecilhos domésticos, como a falta de algum alimento na geladeira, um pneu vazio em seu carro, o desgaste de alguma peça de roupa na lavanderia, falha na temperatura controlada do apartamento, embora saibamos que os humores humanos variam demasiado, fato não ignorado, porém incompreendido na sua totalidade até mesmo pelas mais sofisticadas engenhocas da inteligência artificial.

Já devidamente engravatado, Gabel desponta na cozinha e vê Redi projetada holograficamente em frente ao fogão, cena que em tempos idos era corriqueira em ambientes domésticos como este. Vestindo uma fantasia que cobre parcamente o corpo voluptuoso, escultural, Redi volta-se, sensualíssima, para Gabel – este boquiaberto.
– Seu café já está quase pronto, Gabel. Resolvi fazer ovos mexidos para você esta manhã.
– Redi, O que é isso que você está vestindo. Que corpo é esse?
– Você gostou, Gabel? Posso me apresentar assim para você sempre que desejar.
– Você andou vasculhando meus sonhos, não?
– Você não gostou? Estou feia?
– Você está linda, Redi. Não é esse o problema. Lembro-me de ter sido bastante específico quanto a seus acessos aos meus sonhos.
– Tudo bem. Pensei apenas em agradar você além dos meus feitos de costume, também com os olhos. Isso não acontecerá mais. Prometo. Seus ovos estão prontos. Bom apetite.
– Redi, não se ofenda. Na cláusula contratual optei por deixar meus sonhos intactos, deixá-los no lugar deles, é o que isso quer dizer. Sei que você quis me agradar.
– Mas não o agradei. Sinto-me ridícula.
– Redi, imagino que para você seja difícil entender o que é um sonho. Deve limitar-se a um conjunto de fatores psicoquímicos, ou sei lá o quê, representados pelo inconsciente durante o sono. Algo assim é o que, provavelmente, foi colocado em seu cérebro positrônico. Para mim, um sonho é algo muito íntimo, pertence só a mim e, se duvidar nem mesmo a mim.
– Não consigo compreender isso, Gabel.
– É o que estou tentando te dizer, Redi. Portanto, vamos deixar meus sonhos onde estão, está bem?
– Está bem, Gabel – responde Redi, resignada.

Escorado no balcão, Gabel degusta o café da manhã preparado com esmero por Redi e seus aparatos eletrônicos, enquanto folheia um livro que trouxe da biblioteca da casa de seus pais no último feriado. Redi retira-se para seus afazeres pela casa, olhos e ouvidos presentes em cada metro quadrado daquele pequeno palácio.

– Redi – Gabel diz pouco antes de dar um último gole no café com leite de sua caneca. Você pode preparar minha bicicleta para hoje a noite? Quero dar uma pedalada por aí.
– Sem problemas, Gabel. Estará pronta para seu passeio quando chegar em casa.

No elevador descendente, a voz de Redi informa a Gabel sobre a temperatura externa, a umidade do ar, a velocidade do vento, o trânsito em torno do itinerário até o local de trabalho, os horários do metrô. A voz de Redi é a voz de quem está embaraçada e aborrecida. Gabel percebe as pequenas variações em sua voz e se pergunta se já não é hora de fazer um upgrade no programa.

A luz do sol é quase cegante e todas as pessoas na rua usam óculos escuros. Apressadas, encontram-se nas calçadas às centenas de milhares, esbarrando-se umas nas outras, todas com roupas longas de tecidos leves que cobrem ao máximo sua pele, protegendo-as dos fortes raios UV que cortam os céus do planeta, certeiros como flechas. Gabel some no fluxo de gente deixando para trás o eco de seu último pensamento no cérebro positrônico de Redi.

É de conhecimento de todos que se uma máquina é criada para facilitar a vida do homem, esta mesma máquina, sob os olhos do progresso, sob a égide das cifras, vem, em pouco tempo, a afastar o homem de seu trabalho, levando-o, em muitos casos, a viver à margem da sociedade, ou simplesmente transformando-o em um ser preguiçoso. Obviamente, essa é uma visão muito pessimista do progresso tecnológico, até mesmo do progresso da humanidade diante de seres recheados de cabos, chips, e super calculadoras como cérebro. Porém, não é que acabamos nos comportando como adoradores deslumbrados diante de tais seres? Nós, seres infinitamente superiores a qualquer máquina? Seriam elas apenas extensões de nossos corpos e mentes, utensílios, ferramentas ou seres supremos, nossos sucessores no planeta Terra?