Capítulo 2

O sorriso de uma saborosa pequena vingança desenha-se no rosto digitalizado de Redi. Ao desaparecer na primeira esquina, Gabel, já absorto em seu trabalho atendendo a uma ligação de sua secretária que o coloca a par dos tantos compromissos do dia, não faz idéia de que Redi omitiu em seu relatório a previsão meteorológica que alertava sobre uma forte tempestade que cairia sobre a cidade no fim da tarde daquele dia. Embora as pessoas que se acotovelavam nas calçadas portassem guarda-chuvas, caminhou as oito quadras seguintes conectado ao telefone celular até cruzar a porta automática do arranha-céu de aço e vidro onde trabalha.

Por volta das dezessete horas, Gabel dirige-se para casa deixando para trás uma agenda de compromissos cumpridos. As ruas da cidade continuam cheias de gente apressada e carrancuda. Concentrado em seus passos largos, Gabel ignora o mundo ao seu redor e a traição de Redi, sua fiel companheira. Faltando quatro quadras para chegar em casa, Gabel resolve entrar em um café e comprar alguns bombons trufados para acompanhá-lo no restante do caminho. Sendo conhecido no local, é abordado com uma conversa frívola pelo jovem que o atende atrás do balcão. Raras são as oportunidades que as pessoas dessa cidade tem de serem bem tratadas por suas semelhantes. Contudo, o jovem atrás do balcão tem sotaque e fisionomia de quem não é nativo daquelas paragens. Por sorte, Gabel também não é natural de Curitiba, apesar de viver na cidade há mais de vinte anos, e entra na conversa com o jovem.

Já no caixa, como seus bombons trufados devidamente protegidos em um pequeno saco de papel pardo, Gabel despede-se do jovem atrás do balcão que retribui com um rotundo volte sempre. Pouco antes de abrir a porta do café, o jovem diz a Gabel para apressar-se pois logo cairia uma tempestade daquelas.

– Tempestade? – retrucou Gabel.
– Sim. Você não viu o boletim meteorológico de hoje? – redarguiu o jovem atrás do balcão.
– Não. – respondeu um confuso Gabel com a voz murcha. Em seguida, olhou para fora da vitrine do café e viu as pessoas caminhando apressadas segurando guarda-chuvas fechados em suas mãos.
– Acho melhor você ir logo para casa, ou, se preferir, pode ficar aqui e esperar a tempestade passar.
– Muito obrigado pelo aviso e pelo convite, amigo. Tenho que ir. – e deixou o café às pressas.

Em tempos como este, quando a meteorologia divulga um boletim em que se prevê uma tempestade, é preciso que as pessoas da cidade se preparem para o pior. Não seria exagero afirmar que o que o serviço meteorológico prevê é uma certeza. Tempestades como a que foi divulgada para aquele dia constituem-se de ventos acima de sessenta quilômetros horários, chuva ácida, granizo e poeira tóxica. A desertificação dos arredores da cidade após décadas de extração industrial indiscriminada, o fim dos mananciais e fontes naturais e a morte definitiva da Serra do Mar com a exploração imobiliária, transformaram Curitiba em um caldeirão onde concentram-se os mais diversos fenômenos meteorológicos. Guarda-chuvas, mesmo os reforçados com uma malha especial fabricada em titânio, são apenas paliativos, praticamente objetos simbólicos, que protegem por muito pouco tempo, ou quase nenhum, dependendo da intensidade com que a chuva ácida é trazida pela forte vento.

Duas quadras separam Gabel de seu confortável apartamento e de uma conversa séria com Redi. Esta já o espera com uma série de subterfúgios para dissuadi-lo, pois sabe que ele pedirá explicações sobre sua atitude reprovável. Aplicativos de inteligência artificial de última geração como os que Redi possui, permitem que ela tenha desenvolva com o tempo traços do comportamento humano, aprendam a ser úteis para a convivência com seres humanos, e eventualmente, para sua própria proteção. Redi é expert em usar esses aplicativos em seu favor. Para Gabel, chegou a hora de reprogramar Redi.

O céu escurece subitamente e um longo sopro de vento gelado toma conta das ruas quase vazias. Segurando o pacote com os bombons trufados com toda a força para que não o perca, Gabel abre caminho entre a nuvem de poeira tóxica e as primeiras gotas de chuva ácida que mancham e danificam o tecido de seu suntuoso terno. Em seu pensamento, apenas a decisão de reprogramar Redi. A chuva ácida torna-se torrencial de súbito e as ruas são alagadas em segundos, os boeiros como bocas vomitam o lixo acumulado em suas entranhas. Com a água na altura das canelas, Gabel corre sem saber onde pisar, os olhos ardendo e o sabor acre da chuva em sua boca. Um forte estrondo silencia a enxurrada por alguns instantes. Um poderoso relâmpago atinge o para-raio de um dos grandes edifícios ao redor; uma luz branca e leitosa, quase tangível, envolve o cenário e é engolida com avidez pela escuridão soberana da falsa noite.

Gabel fez menção de proteger os olhos com o braço que segura o pacote de bombons trufados, encolheu o corpo com o estrondo causado pelo relâmpago e desequilibrou-se, esbarrando em uma lixeira. Desnorteado e cegado pela luz branca, seus passos perdem-se na água suja, não sabe mais se está pisando na calçada ou na rua. A sua frente um boeiro enconde-se sob a água, a tampa solta, equilibrando-se em seus lábios metálicos. As primeiras pedras de granizo tamburilam sobre os capôs dos carros que arriscam passar pela rua inundada. Os semáforos piscam a luz amarela clamando para que as pessoas prestem atenção em seus passos.

Da janela blindada de um luxuoso escritório, seis andares acima, uma mulher vestida em um taiê preto sorve um cremoso capuccino, impassível à tempestade. Com a caneca em seus lábios, o vapor nublando levemente sua visão, ela vê, no meio da avenida, um homem vestido em terno e gravata que segura com uma das mãos um saco de papel pardo, tateando desesperadamente o ar com a outra mão, tentando alcançar a margem oposta em meio a passos imprecisos e pesados. O silêncio na sala é quebrado pelo som digital do espocar de uma garrafa de champanhe. Na grande tela digital na parede oposta à janela, surge uma mensagem que diz "Negócio fechado, querida!". A mulher vestida em taiê preto desvia o olhar da rua, vê a mensagem e sorri entredentes, voltando sua atenção para o homem que luta contra a tempestade. Em seu íntimo, deseja que ele ainda esteja lá para que possa relatar em seu blog o testemunho da façanha de um louco. Sorri ao ver que o homem permanece na avenida, segurando o saco de papel pardo, lutando contra a tempestade como um cavaleiro que enfrenta um dragão iracundo.

– Vamos lá. Faltam poucos passos. – Pensa a mulher de taiê preto.

O homem desaparece na avenida inundada, engolido pelo boeiro que se escondia sorrateiro sob as águas imundas. Ao fundo, sutis raios de sol clareiam o fim da tarde, rasgando as grossas nuvens negras, trazendo consigo a promessa de alguns minutos de tortura antes de deitar-se definitivamente por detrás do horizonte recortado da cidade.

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